Como todo duelo precisa de um vencedor, aqui tentarei dizer qual “Lado Bom da Vida” é melhor, o livro ou o filme. Mas antes de iniciar a disputa é preciso entender que são dois produtos diferentes e que cada um cumpre seu papel na mídia/plataforma onde está inserida. E também é bom lembrar que filmes baseados em livros não têm a obrigação de ser idênticos à obra original. O que a produção cinematográfica precisa é captar a essência da história e transmiti-la de outras formas, usando os recursos do cinema. Antes de apontar o dedo é preciso respeitar o filme como ele é: uma adaptação. E o resultado do “duelo” do Salada de Bacon não busca a verdade absoluta, mas apenas tentar fazer uma imersão nas duas obras e ver qual delas agradou mais à autora que vos escreve. Porque decidir qual é melhor é uma tarefa pessoal. Não dá para impor nosso gosto ao mundo. Ok?!
O livro de Matthew Quick lançado em 2008 conta a história de Pat (vivido por Bradley Cooper no cinema), um homem de 30 e poucos anos que acaba de sair do sanatório (o lugar ruim, como diria Pat) e quer refazer sua vida voltando para a ex-mulher, Nikki. Pat ficou no lugar ruim por quatro anos, mas acha que passou só alguns meses por lá. O protagonista também não se lembra o que o levou para o lugar ruim e nem por que todos evitam trazer lembranças de seu passado à tona.
O reajuste de Pat à sociedade e ao convívio com a família é difícil, e as coisas só chegam perto de entrar no eixo quando o protagonista conhece Tiffany, que é tão disfuncional quanto ele. Tiffany é uma jovem viúva depressiva e que se transformou numa ninfomaníaca após a morte do marido. E é no meio desses distúrbios psicológicos que os personagens se entendem.
Os problemas de ansiedade e depressão do autor do livro serviram de base para criar Pat, que sofre de transtorno bipolar. Em toda a obra é visível como Quick tem o domínio do assunto, e como trata de um tema tão delicado com tanta leveza.
O livro chamou a atenção do diretor David O. Russel, que trabalhava no roteiro há anos (antes mesmo de lançar o aclamado “O Vencedor”), por conta de de seu filho, que é bipolar e sofre de transtorno obsessivo-compulsivo. Esse fator foi primordial para que o filme desse certo, afinal O. Russel conhece bem o que passou nas telonas.
A internação e a música
Essa é uma das primeiras diferenças notáveis entre filme e livro. Na obra original Pat não faz ideia do motivo de ter sido internado, descobrindo apenas no fim do livro. Já no cinema a razão para a internação é rapidamente mostrada ao espectador durante uma das sessões de terapia do protagonista, que tem total consciência de que quase matou o amante da esposa ao pegar os dois no flagra.
No cinema foi interessante saber logo de cara o que aconteceu, o que deixa a audiência ainda mais perplexa com a insistência louca de Pat em reatar com a esposa, apesar dela tê-lo traído. Já no livro o jogo de esconde também ficou legal, já que o leitor nunca entende o motivo do fim do casamento e muito menos porque a família de Pat parece odiar tanto Nikki. Isso deixa o leitor imerso na trama, dando a ele a mesma sensação de Pat, que está totalmente perdido.
Ouça a música que enlouquece Pat no filme:
Junto com o flagra da traição veio outro trauma: a fatídica música que enlouquece Pat. No filme a canção que embalou a pulada de cerca de Nikki é “My Cherie Amour” de Stevie Wonder, enquanto no livro é “Songbird” de Kenny G. Nos dois trabalhos a canção foi o tema do casamento de Pat e Nikki, o que serviu para enlouquecer ainda mais o protagonista ao descobrir a traição. Mas nesse quesito eu preferi o livro, já que não é muito difícil fritar o cérebro ao ouvir o chatíssimo Kenny G. Afinal, quem não se lembra do som daquele sax que embala as viagens de elevador ou as esperas nas chamadas telefônicas? As alucinações que Pat tem com o senhor G são memoráveis. O músico esfrega o saxofone na cara de Pat e sempre faz com que ele se lembre do casamento e da traição que sofreu ao som de sua clássica “Songbird”.
Tiffany
No livro Tiffany é mais velha que Pat e deve ter cerca de 38 anos, e isso quase impediu a participação de Jennifer Lawrence (22 anos) no longa. Atrizes mais experientes como Anne Hathaway, Elizabeth Banks, Rooney Mara, Kirsten Dunst e Angelina Jolie foram cotadas para viver a protagonista, enquanto David O. Russel (diretor do filme) fez um teste com Lawrence apenas por consideração, já que nunca passou em sua mente contratar a jovem atriz. Mas o talento falou mais alto e J-Law desbancou todas as suas concorrentes, fez um grande trabalho e de quebra levou um Oscar pra casa.
O lado bom do filme é o maior espaço dedicado à Tiffany. No livro ela é importante para o equilíbrio de Pat, mas não é figura recorrente. As páginas se dedicam mais ao relacionamento do protagonista com os pais e com o futebol americano. A personagem feminina na tela ganhou mais espaço e mais importância, e contribuiu muito para o bom fluxo da trama.
Vale lembrar aquele cena incrível onde Tiffany destrói os argumentos do Pai de Pat (interpretado por ninguém mais ninguém menos que a lenda Robert de Niro) cuspindo os resultados dos últimos jogos da liga americana, cena que não está nos livros. Esse é um dos grande momentos de Tiffany no filme, e transforma o espírito da personagem do livro em ação no longa.
Família de Pat
No livro o sobrenome da família é Peoples, o pai de Pat é extremamente mal humorado e não conversa com o filho, o irmão de Pat aparece muito mais, inclusive com sua esposa, e a mãe vive numa corda bamba entre agradar o marido e o filho. No filme o sobrenome é o italianíssimo Solitano, o pai é bem mais maleável, o irmão aparece pouco e a mãe não tem tantos problemas.
Talvez resida no núcleo familiar o grande mérito do filme. A casa da família Solitano, assim como o cotidiano dos personagens que lá vivem, é muito bem retratada por O. Russel. Toda a dinâmica do livro, que às vezes é difícil de enxergar visualmente, foi muito bem traduzida para a tela. E isso se deve ao estilo do diretor, que rodou um filme inteiro praticamente com todos os diálogos improvisados.
O clima da família reunida, os diálogos rápidos, as piadas, os mau humores, a rapidez das conversas, as cenas de briga, os choros e risos foram muito bem captados pelo diretor. Há muitas diferenças entre livro e filme, mas o primordial do livro está na tela. O. Russel pegou a essência das páginas e colocou perfeitamente na telona com um filme dinâmico e, muitas vezes, louco.
A dança
O concurso de dança é o fio condutor da história no cinema, já que o diretor optou por transformar o livro em uma comédia romântica. O filme é bem mais leve que a obra literária, mas isso não tira seu valor. A trama é passada de um jeito mais ameno, mas sem deixar de tocar na ferida. O longa é colorido, claro, luminoso e engraçado, mas não deixa de ter o lado sombrio dos distúrbios psicológicos e nem o preconceito que as pessoas sofrem por conta deles. O. Russel optou por contar sua história usando a dança, que ocupa apenas algumas páginas do livro, talvez para restringir todas as tramas em um enredo só.
A decisão do diretor foi muito bem trabalhada e o filme não é uma história sobre dança, muito pelo contrário, a dança está lá só para conduzir a história e servir de analogia para o desenvolvimento dos personagens. É por meio da dança, do companheirismo, da responsabilidade de aprender a coreografia que Pat encontra seu equilíbrio, volta a tomar seus remédios e enxerga que há muito mais na vida do que sua amada Nikki.
E o que falar da cena sensacional da apresentação da dança? Como foi bom ser surpreendida por aquele concurso. Seria muito clichê se o casal arrasasse na pista e vencesse a disputa. A visão de que Tiffany e Pat eram claramente os piores dançarinos antes mesmo do concurso já mostrou que David O. Russel não seguiria pelo caminho fácil. E a dança maluca que misturou valsa, rock, dança contemporânea, sapateado e Dirty Dancing com aquele constrangedor salto final valeu como ponto alto do filme por não ser clichê, mostrando que “O Lado Bom da Vida” é sim uma comédia romântica, mas não apenas um filme qualquer para o gênero, ele tem sua qualidade e sua marca, e vai muito além de contar apenas uma história de amor.
Apesar do casal ser o melhor no concurso de dança no livro, isso não torna a situação mais clichê ou menos ridícula. Afinal, na disputa das páginas, eles concorrem com adolescentes, o que torna constrangedor a participação de dois loucos com quase 40 anos de idade naquele concurso juvenil.
Faltou no filme
Quando li a cena da praia imediatamente me perguntei por que aquela passagem não foi para o filme. E que surpresa a minha ler uma entrevista do escritor dizendo que esta é uma das suas cenas favoritas e que ele até curtiu a ausência dela no filme, porque isso daria o privilégio a cada leitor de imaginá-la em sua mente, do jeito que sentiu quando leu.
Se ficou curioso, leia o livro, vale a pena.
Afinal, qual é melhor?
O filme. Eu preferi o filme. Mas talvez isso tenha a ver com a sequência das coisas. Primeiro vi o longa e só depois comprei o livro. Acontece que o que eu já tinha achado bom, achei ainda melhor depois da leitura. O filme “O Lado Bom da Vida” ganha mais valor depois que se lê “O Lado Bom da Vida”. Não por ser melhor, mas por ter captado com maestria o essencial da obra original. E também por seu elenco incrível que conseguiu um feito que há 30 anos não acontecia, ser indicado em todas as quatro categorias de atuação: melhor atriz para Jennifer Lawrence (única que venceu), melhor ator para Bradley Cooper, melhor atriz coadjuvante para Jacki Weaver e melhor ator coadjuvante para Robert de Niro, que há 21 anos não era indicado ao prêmio maior do cinema.
Matthew Quick contou sua ótima história e David O. Russel captou o melhor dessa história e passou para o cinema de uma forma brilhante. O elenco talentosíssimo e afiado deu uma bela vida aos ótimos personagens de Quick, e a direção espetacular deixou a obra ainda mais gostosa de se ler, ver, ouvir, falar, comentar, recomendar…
Por Débora Anício